Por Arnaldo Malheiros Filho
Conheci o ministro Marco Aurélio em sessão.
Eu fizera sustentação oral num caso de muita repercussão, envolvendo acusação de crimes financeiros. Falei para uma Turma então composta por três Ministros, pois havia duas vagas a preencher. O relator era o presidente, decano da Casa e seu ex-presidente, que proferiu voto contrário à pretensão, e o segundo juiz pediu vista.
Quando o feito voltou à pauta, as cadeiras vazias haviam sido preenchidas, uma delas por Marco Aurélio. O presidente, com sabedoria e justiça, determinou que o julgamento fosse reiniciado, para dar oportunidade aos novos Ministros de participar da decisão, em vez de limitá-la a apenas três julgadores. Gentilmente, mandou me avisar de que eu poderia novamente proferir sustentação oral. Lá fui.
Já de início impressionou-me a juventude do novo Ministro, que aparentava menos idade do que a pouca que tinha. Após a sustentação o presidente releu seu voto e acrescentou um substancioso adendo, rebatendo os argumentos que eu usara na sustentação anterior. O segundo votou a meu favor.
Marco Aurélio, ao contrário do que eu esperava, não pediu vista. Passou a votar, com densa fundamentação, divergindo do relator e sem usar o mesmo embasamento do segundo juiz. O relator, com sua autoridade de presidente e decano, replicou, mas o benjamim – que já mostrara notável capacidade de compreensão e exposição – revelou uma firmeza inabalável em seu entendimento. Ganhei a causa e deixei a sessão impressionado com a nova aquisição da Corte, certo de que se tratava de Ministro destinado a fazer história.
Inteligência, clareza e firmeza: As qualidades que Marco Aurélio revelou desde a chegada, marcaram sua judicatura no Supremo.
De fato, logo após comecei a ouvir comentários, pois todos falavam dele. Funcionários referiam-se a um Ministro minucioso e detalhista, que não raro mandava até retificar autuações; assessores diziam não ter muito a fazer, pois o chefe lia todos os processos e redigia oralmente todos os votos; advogados se encantavam com sua acolhida no gabinete; colegas estranhavam um par que dizia ser a sala de sessões o único lugar a se discutir processos, na cultura das “onze ilhas”.
Mas para entender essa figura tão marcante, é preciso abrir um parêntese e falar de um tempo anterior, falar do Judiciário na ditadura.
O golpe militar foi cruel com a magistratura. Na ditadura envergonhada de Castelo Branco (valho-me da terminologia de Elio Gaspari) já se suspenderam as garantias e juízes foram cassados, destacando-se, em São Paulo, a figura modelar de Edgard de Moura Bittencourt, exemplo de grande juiz, extirpado de nosso Tribunal de Justiça pela violência do regime.
Nessa fase o Supremo foi poupado, a despeito das irritações que o Presidente Ribeiro da Costa causava na caserna. O sucessor ungido, o sargentão Costa e Silva, disse que o problema não era o Supremo, mas seu presidente, limitado a um mandato, insinuando que sua importância tinha os dias contados. Pois a Corte se reuniu e, por unanimidade, aprovou emenda regimental com disposição transitória do seguinte teor: “O Ministro Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa exercerá a presidência do Supremo Tribunal Federal até o término de sua judicatura". Era a melhor resposta que poderia ser dada à truculência armada.
Empossado o sargentão, logo a ditadura perdeu a vergonha e avançou sobre o Tribunal, cassando as históricas figuras de Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. O aviso estava dado a todo e qualquer juiz brasileiro: Discordar da ditadura significava o fim da carreira!
A magistratura foi se adaptando, uns deslavadamente se colocando como súcubos das fardas, outros procurando manter a dignidade, mas evitando o fatal confronto direto. Isso levou à criação de uma cultura jurisprudencial a favor do Estado todo-poderoso. Apenas para dar aos jovens um exemplo do que se passava na esfera criminal, lembro o entendimento cristalizado no sentido de que o indiciamento em inquérito não seria constrangimento, de modo que, mesmo se ilegal, não ensejaria o conhecimento de Habeas Corpus!
Essa cultura autoritária ainda era dominante na Corte quando da chegada de Marco Aurélio. O presidente Sarney havia sido felicíssimo na nomeação dos Ministros Pertence e Celso de Mello, os primeiros a enfrentar a ideologia ditatorial e Marco Aurélio veio para essa ala, pois não tinha compromisso algum com a ordem decaída em 1988. Sua judicatura assinala a transição da ditadura para o Estado Democrático de Direito.
Tantas vezes ficou vencido que o apelidaram de mister discenting, como na Suprema Corte dos Estados Unidos são chamados os eternos vencidos. Hoje não é mais e não foi ele quem mudou. Foi o Tribunal que evoluiu.
Marco Aurélio se agigantou como garantista, não como liberal. É curioso, muita gente que nunca leu Ferrajoli, o grande teórico do garantismo penal, usa e abusa desse termo, especialmente para criticar os “liberais”. Eu não rotulo Marco Aurélio de liberal. Como exemplo aponto seu voto – que ouvi com muita tristeza, ainda que sem qualquer interesse no feito – denegando Habeas Corpus no caso da Operação Satiagraha, ao contrário do que teria feito um juiz liberal. O garantismo consiste apenas em assegurar efetividade concreta às garantias que a Constituição dá ao indivíduo contra o poder do Estado.
Luigi Ferrajoli diz que se a Constituição não for aplicada às mais corriqueiras situações do dia-a-dia, com “técnicas coercitivas, ou seja, garantias”, ela não passará de um pedaço de papel, inútil para a sociedade. Hoje há quem ressuscite juristas do nacional-socialismo que diziam que a Constituição não passava, sim, de um pedaço de papel, incapaz de se opor à vontade do povo, expressa pelo Führer. A coisa agora piorou, pois não há mais Führer e qualquer autoridade tem pretensões de veicular a vontade do povo.
Marco Aurélio nunca se alinhou a esses. Ao contrário, aferrou-se sempre à afirmação das garantias constitucionais, essenciais para a concretização do Estado Democrático de Direito.
Implicitamente essa nova safra de Ministros dos governos civis sepultou dois axiomas perversos da jurisprudência da ditadura.
O primeiro dizia que o Supremo não é casa de Justiça, mas órgão de unificação da interpretação do direito federal. Fosse isso verdade e a corte deveria retirar de sua denominação a palavra “Tribunal”. O Estado Democrático de Direito não entende uma “casa de Direito” que não seja casa de Justiça, e nele não há tribunal que não o seja.
O segundo é o de que o Supremo jamais olha para os fatos, mas só para o Direito. Ora, interpretar o Direito é aplicá-lo, e isso só é possível quando se amolda o texto do diploma legal a fatos, criando-se a norma. Esses fatos são, não raro, pequenos, prosaicos até, mas isso é o exercício da jurisdição constitucional que Marco Aurélio tão bem pratica.
Vinte anos, parece que foi ontem! E foi o tempo necessário para que o vencido passasse a formador de opinião, ajudando a levar a Suprema Corte para o garantismo constitucional.
Que bom para o Brasil seria ter alguém como Marco Aurélio em cada vara, em cada grotão, em cada juízo de primeiro grau nas grandes capitais, em cada Tribunal de apelação. Não haveria maneira melhor de desafogar o Supremo das causas que ali chegam.
Texto extraído de Consultor Jurídico
Disponível em: http://www.conjur.com.br/2010-jun-15/marco-aurelio-20-anos-vencido-passou-formador-opiniao
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